terça-feira, 19 de abril de 2011

Sobre brasões e "descendências" - Orgulho de ser brasileiro.


Sobre brasões e "descendências"




Uma coisa que me tira do sério é gente enchendo a boca para dizer que é europeu, só porque um bisavô seu nasceu na Alemanha ou na Itália que, aliás, nem tinham esses nomes quando o ancestral veio ao mundo. 
Que se entenda bem, não tenho nada contra quem faz cidadania italiana, portuguesa, alemã. Acho até legal. É possível que ainda faça a minha. Não vejo mal nenhum em se pertencer a mais de uma nacionalidade. A questão é como se trata o fato de ter essa origem.
O problema aparece quando os descendentes de europeus utilizam um discurso onde fica claro ou subentendido que isso agrega a eles uma qualidade superior. O mecanismo que gera essas visões tem várias engrenagens. Em primeiro lugar, está um desprezo pelo Brasil, ao qual, por vezes, se agrega os adjetivos "pobre", "atrasado", "mestiço". Junto a isso, vem um enaltecimento da Europa como lugar "rico", "civilizado", "moderno", "branco". A  origem europeia é vista como capaz de transmitir aos seus "afortunados" portadores qualidades como o amor ao trabalho, a ordem e a alta cultura. Essa transmissão se daria, ou por tradição cultural, ou, nos casos menos defensáveis, é vista como sendo dada pela própria biologia, em uma sobrevivência de explicações raciológicas.
Acontece que a Europa de onde saíram milhões de emigrantes para diversas partes da América, no século XIX e início do XX, era um lugar de industrialização, mas também de grande geração de miséria. A lenta dissolução dos direitos consuetudinários ao uso da terra proletarizou inúmeras famílias camponesas. A expansão da indústria arruinou o artesanato tradicional. Foram esses deserdados famélicos que vieram buscar melhor sorte nas novas terras. Ou alguém pensa que foram muitas as pessoas de boa condição social a aceitar a aventura de atravessar o oceano e começar de novo em outro mundo?
Adoro ser historiador, mas esta profissão tem algumas maldições. Uma delas é o parente de um amigo que fez a genealogia da família e nos garante que descende de Carlos Magno pela linha materna e de Adão pela paterna. Aí diz que "tem descendência" alemã ou italiana e que seus ancestrais europeus, que migraram para o Brasil, eram nobres. Daí te mostra o brasão da família, em cima da churrasqueira. 
Dá vontade era dizer que: 1- Não é "tenho descendência" e sim "tenho ascendência" ou "sou descendente", pois "ter descendência" alemã significa que você tem filhos ou netos alemães. 2- Salvo raríssimas exceções, as pessoas que vieram para o Brasil eram miseráveis que buscavam um futuro onde pudessem fazer três refeições por dia. Os antigos servos tomavam o nome de seus senhores ou da região em que viviam (o que dá no mesmo, pois os nobres muitas vezes tinham títulos que incorporavam o nome de seu senhorio). Assim, aquele brasão não é da sua família, companheiro, mas dos nobres que a exploravam.
Mas, na maioria das vezes, não digo nada. Dou um sorriso amarelo e sigo adiante.
Não sou um nacionalista inveterado mas aprecio a adorável mistura que formamos. Além disso, assim como ocorre com a Caminhante, também a mim enerva essa mania de glorificar tudo que é estrangeiro só porque não é do Brasil. Quando morei no Rio de Janeiro que, desde a Era Vargas, dita o modelo do que é ser um natural deste país, percebi que eu não era brasileiro. Depois, morei na França e percebi que era. Ou seja, por mais diferente que eu fosse de um carioca, era muito mais parecido com ele do que com um francês. Ao mesmo tempo, quando vejo os filmes do Fellini ou do Moniccelli sobre as cidadezinhas da Itália, fico impressionado como aquilo tem a ver com a cidade onde nasci e com a minha família. Reconheço em mim muito dos traços daquela cultura e também da alemã, que vem por intermédio de meu avô materno. Não me orgulho desses traços mais do que me orgulho de minha origem indígena ou negra. Mas os reconheço, às vezes com raiva, às vezes com terno e verdadeiro afeto, mas não porque sejam brasileiros, ou italianos ou alemães, e sim porque me remetem à infância, aos meus avós, pais, tios.
As origens culturais estão e mim e me constituem. Não há como fugir e até gosto disso. O nacionalismo radical não. Essa escolha, sim, eu posso fazer.

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